Claudio de Lima

"Passo e fico, como o Universo" O Guardador de Rebanhos - Fernando Pessoa

Textos


A holandeza

Aconteceu num final de semana. Que por sinal tinha tudo para ser tranqüilo.
Motivo: família viajou pra praia na sexta à tarde. Sem mulher, sogra, empregada, filhos... a casa inteira para mim.
Enfim, iria organizar a papelada, por em dia os relatórios e claro fazer aquela velha manutenção no Opala 79.
Raridade que ganhei num sorteio. Aliás, este é meu hobby, mecânica de carros antigos. Até hoje não sei como fui parar na administração, talvez por influencia da família, pai, avô, e por aí vai.
No sábado, acordei bem cedo e com ótima disposição. Dei uma volta com o Totó pelo quarteirão, não podia ir muito longe. Com onze anos de idade, e acima do peso, cansaria rápido. Meu Cocker Spaniel é um grande amigo que tenho.
Voltamos pra casa, tomei café e lá pelas nove, já estava nos fundos do quintal, lidando com a máquina, uma espécie de oficina.
Nossa casa é antiga, o terreno é enorme, possui uma área de fundo bastante arborizada.
Sobretudo lá ficava minha oficina, um quarto de ferramentas e um banheiro, que por suas dimensões era também usado como deposito de materiais diversos.
Aquela papelada que não tem destino certo, que não se sabe se vai ou se fica e acaba resistindo a grandes limpezas, arrumações e mudanças de endereço.
Passei boa parte da manhã mexendo no carro, tira peça, limpa, coloca, tira outra peça lubrifica, coloca de volta, liga, desliga, torna a ligar e vai...
Com uma boa musica e uma cervejinha o tempo vai passando. Assim, entre uma pausa e outra resolvi ir ao banheiro.
Entrei, fechei a porta, tranquei-a como de costume, sentei, peguei uma revista pra ler... Veja, outubro 2005, epa?
Depois de alguns minutos, ao sair do banheiro, virei a chave e percebi que ela travou na fechadura. Não ia para esquerda, nem para direita.
Mesmo assim, mantive a calma, pensei, questão de jeito. Fiz alguns movimentos suaves na tentativa de virar a chave e liberar a porta. Estava definitivamente emperrada, então resolvi usar a força.
Não foi uma boa idéia, a chave quebrou no miolo.
(Palavrão...) mania de fechar a porta do banheiro, vicio antigo.
Sentei-me novamente no vaso, agora para examinar melhor minha situação.
A porta era antiga, pesada e a fechadura quem sabe poderia ser desmontada, será ?
Revirei o banheiro atrás de uma ferramenta, qualquer coisa, uma chave de fenda, nada. Estava por ironia a dois metros de minha oficina.
Talvez pudesse arrombá-la com os pés. Primeira tentativa nada, nem se mexeu, segunda tentativa nada... melhor pensar em outra coisa, estava descalço, poderia acabar machucando-me.
Tentei sair pela janela , bobagem pequena demais, mal passava meu braço.
Tinha que recobrar a calma, deveria haver uma saída para aquela situação.
O tempo ia passando já eram duas da tarde. Pensei em gritar por ajuda, mas sem vizinhos, podia atrair algum ladrão, a casa estava toda aberta.
O que fazer? Concluí que tinha poucas alternativas a não ser esperar que alguém aparecesse. Tanto que, aproveitei a montanha de jornal a minha volta e forrei o chão, assim ficaria mais confortável.
Por ora, além de ler poderia dormir, deixar o tempo passar. Devo ter adormecido um pouco, fui acordado pelo latido do Totó.
A princípio preocupou-me o fato de alguém estar tentando entrar em casa, porém percebi que seu latido próximo a janela do banheiro tinha outra razão: fome. Sua última refeição tinha sido por volta das oito horas me já eram dezesseis e ele pedia comida.
Afinal eu estava ocupando o que já tinha sido no passado, seu esconderijo e até seu banheiro.
Pois, comecei a revirar as caixas de papelão, a procura de sua ração. Encontrei pouco mais de meio saco e pela janela fui alimentado o animal.
Tudo aquilo era uma cena inimaginável. Acredito que até o Totó, desprovido de mente racional, sentia que algo estranho estava acontecendo.
Sempre fui um cara prático, o que tem me salvado muitas vezes, e agora não seria diferente.
Se, terei que esperar, vou ocupar-me descansando e lendo! Tenho a água, a luz, o vaso, só não tenho: comida.
Tinha que trabalhar minha mente, afim de, evitar pensar naquilo. Bem, se tiver fome bebo água, o quanto suportar.
Minha primeira noite foi terrível. Custei a adormecer. Digamos que tentava adaptar-me a “nova cama” ... dura demais.
Assim, o sono foi muito picado e acordei com o corpo dolorido.
Fiz alongamento, alguma ginástica. Tomei o que foi quase um banho de torneira. E novamente encarei a realidade do meu confinamento.
A solidão aqui dentro e a vida lá fora, pássaros cantando, cachorros latindo, o sol entrando pela pequena janela.
Pouco a pouco, aproximei-me mais da janela para espiar lá fora. O vento brincava nas árvores e Totó no quintal, alheio ao meu drama.
Relógio marcando sete horas do domingo, daqui há pouco ele viria pedir comida novamente.
Tinha perfeita noção que meu maior desafio neste segundo dia era a comida.
Pela manhã ocupei o tempo lendo muito, contando os azulejos e pensando no que a vida me estaria mostrando com aquela situação.
Ao alimentar o Totó, me peguei olhando com interesse para seu saco de ração.
O que é o instinto animal de alguém já há quase 24 horas sem comida.
No meio do dia já estava olhando para a ração com real interesse.
Chequei a embalagem: Pedigree, Weight Control (controle de peso). Conteúdo calórico reduzido para cães, com baixo nível de atividade ou predisposição a obesidade. Proteína animal exclusivamente de frango, de alta qualidade e fácil absorção.
Percorri os olhos sobre a informação nutricional, tudo ok.
Fiz mais que isto: levei-a ao nariz para cheirá-la e coloquei um grão na boca.
Nada mal, o sabor era uma mistura milho, batata, bolacha, coco, noz e frango.
Resisti, devolvi o saco ao seu armário, retomei o mínimo de equilíbrio e bom senso.
Foi um dia difícil, devo ter ingerido o equivalente a uns cinco litros d’água.
Ainda bem, pela noite consegui deitar-me mais cedo, dormir melhor, apesar da fome noturna. Tinha a sensação de ter um buraco no meio da barriga.
Ao acordar no domingo, tinha uma certeza, iria dividir com Totó a ração do dia.
O fato é que esta decisão foi tomada após a conclusão de que somente a fome e somente a fome, ela mesmo, me incomodava.
Não hesitei, por volta das nove horas tomei um punhado de grãos em minha mão direita e como quem saboreia o amendoim, fui colocando um a um em minha boca.
Simples, fazia isto enquanto lia e resolvi concentrar-me de tal forma no texto, que o sabor da ração passava quase despercebido.
Bem quase... por algum momento senti-me como Steve Mac Queen, em Papilon, porém em circunstancias mais felizes, bem mais.
Repeti isto mais três vezes até a noite e confesso-me surpreso por tê-la suportado.
Sobretudo estava mais calmo, certo de no dia seguinte pela manhã, em que seria libertado daquela situação.
Pela noite buscando mais material para leitura, encontrei em uma das caixas de revistas semanais, aquilo que posso qualificar de presente maravilhoso e surpreendente.
Aquilo sim, era um presente que mudaria todo o sentimento reinante naquela noite e de certo modo compensaria as dores e aflições do confinamento.
No fundo de uma das caixas, a minha espera, a holandesa!
A holandeza, era meu primeiro álbum de figurinhas. Datado de 26 de abril de 1966, quando tinha 12 anos de idade. A vida havia preparado uma surpresa para mim.
E tem mais, aquilo me enlouqueceu, me pôs em conato com minha infância e adolescência. Tantos cenários, tantas histórias.e rostos desfilavam na minha memória.
Muito da minha vida de criança estava ali, entre aquelas páginas...Grandes Homens do Brasil, Trajes Típicos, Peixes, Navios, Pintores Famosos...
Pudera, a descoberta me devolveu a alegria e o encantamento necessários para lidar melhor com a situação que estava vivendo.
Melhor, nas horas que se seguiram até adormecer permaneci numa espécie de sonho, viajando por minha história.
Pela manhã acordei com minha família, batendo assustada na minha porta.
Depois de mais de meia hora de trabalho do chaveiro, finalmente fui libertado. Depois de abraçar a família , saí do banheiro com a holandeza debaixo do braço.
Meu filho me perguntou:
- Pai, que revista é essa aí?
Respondi: - Ah, meu filho, não é uma revista, se tiver um tempinho te mostro, é um pedaço de minha história.
Fomos para meu quarto e depois de 15 anos de vida, meu filho e eu pela primeira vez, pudemos sentar e conversar sobre nossas criancices.




 
Claudio Lima
Enviado por Claudio Lima em 11/10/2009
Alterado em 15/06/2017
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