O presente
O sol estava se pondo. O ônibus deslizava lento pelos corredores que o levariam da zona sul ao centro da cidade. Fazia calor, estávamos na primeira semana de dezembro e como sempre acontece nesta época do ano, havia uma certa euforia no ar e São Paulo se enfeitava para o Natal. Voltava da visita a um cliente e entretia-me com a leitura de uma dessas revistas semanais, não me recordo qual, quando entre uma freada e outra detive-me a observá-lo. Devia ter no máximo uns doze anos de idade, usava uma camiseta vermelha desbotada, bermuda amarela, na altura dos joelhos e um par de sandálias, já bem desgastadas, menores que seus pés. Aparência sofrida, magro, aspecto de doente. Era inevitável um sentimento de compaixão perante um quadro como aquele, de aparente penúria e abandono. Sentado no banco lateral, na parte traseira do ônibus, meu ângulo de visão era facilitado e esta posição permitia-me olhá-lo sem gerar constrangimento. Se não fosse por minha curiosidade, sua presença sequer seria notada. De Santo Amaro para a Nove de Julho, tudo parecia impressioná-lo, os grandes edifícios, os carros luxuosos, aqui um relógio gigante, ali um cachorro perdido numa esquina, a cada olhar um misto de surpresa e susto. Com a chegada da noite a cidade foi sendo tomada pelas luzes de Natal e a paisagem foi ficando especialmente mais bela... percebi um brilho no seu olhar e pela primeira vez o vi sorrir. Perguntava-me: qual seria seu nome? De onde vinha? Para onde estaria indo? Enfim, qual era sua história? No Terminal Bandeiras, ele foi um dos primeiros a descer do ônibus, porém diante do intenso movimento, estancou indeciso, certamente escolhendo o caminho a seguir. Passos vagarosos, tomou a passarela na direção ao Vale do Anhangabaú. Andava como um estrangeiro. Não contive minha curiosidade e pus-me a segui-lo. Diante da estação do Metro, sentou-se numa espécie de mureta e passou a observar o movimento do vale. Fui até a banca de jornal ler as notícias do dia e fiquei por perto a observá-lo disfarçadamente. Havia intenso movimento de pessoas pois o comércio no centro da cidade ainda estava aberto para as compras natalinas. Após alguns minutos, uma moça aproximou-se dele. A jovem loura estava elegantemente vestida, via-se que havia saído do trabalho naquele horário. Percebi que perguntou alguma coisa, e que ele meio sem jeito respondia. A conversa foi curta, em minutos a moça deixou o local despedindo-se dele com um leve toque em seu ombro esquerdo. Seu olhar a acompanhava, desaparecendo na multidão. Nos minutos seguintes sua atitude curiosa não havia mudado. Continuou sentado ali, mesmo quando rompeu uma forte garoa. Era como se estivesse descobrindo o Natal. A esta altura eu já havia me refugiado da chuva e estava na entrada do metrô, procurando entender o sentido da minha presença ali e que significado aquela experiencia traria para minha vida. Minutos depois, a jovem estava de volta, trazia o que parecia ser um presente em cada mão. Aproximou-se do rapaz, que a recebeu com um olhar de espanto, pois acredito que não imaginava que ela voltasse. Visivelmente emocionado, juntou os dois pacotes contra o peito, sorrindo, tentou dizer alguma palavra, mas foi inútil, estava muito emocionado. A jovem compreendendo a situação, acenou para ele e deixou o local. A noite caia no Vale do Anhangabaú, o garoto depois de alguns minutos, ainda hesitante, abriu um dos presentes, envolvido com papel vermelho. Caixa de bombons, comeu dois, quase de uma vez. Olhou o segundo pacote e parou por um instante, talvez tentando advinhar o que ele continha. Com rápido puxão retirou a embalagem amarela e reconheceu seu conteúdo: um par de sandálias havaianas novas, azuis. Verificou o tamanho, vai servir, pensou. A noite avançava e o garoto olhava seus pés e suas velhas sandálias. Parecia rever suas histórias, seus caminhos percorridos, como se despedindo de suas antigas companheiras. Enfim, fez a troca. Ameaçou guardá-las na caixa, mas desistiu, depositando-as ao lado da mureta da praça. Quem sabe, poderia servir a alguém, devia ter pensado. Seus pés recebiam e agradeciam o presente. Rapidamente se pôs a andar e em segundos, já estava subindo as escadas que o levariam de volta ao Terminal Bandeiras e de lá para.... Continuei sem saber seu nome, de onde veio, tão pouco sua história. Fiquei por alí mais alguns minutos, até sentir que já era hora de ir para casa. Peguei o metrô, último vagão e sentei-me junto a janela. Pelos túneis escuros, busquei na memória a ultima cena, a mureta e a calçada vazia, as velhas sandálias que tinham sido rapidamente levadas. E assim a vida seguia escrevendo novas histórias em outros pés, por outros caminhos, quem sabe em outros Natais. Claudio Lima
Enviado por Claudio Lima em 09/08/2011
Alterado em 02/11/2015 Copyright © 2011. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. |