Claudio de Lima

"Passo e fico, como o Universo" O Guardador de Rebanhos - Fernando Pessoa

Textos


O presente

O sol estava se pondo. O ônibus deslizava lento pelos corredores que o levariam da zona sul ao centro da cidade. Fazia calor, estávamos na primeira semana de dezembro e como sempre acontece nesta época do ano, havia uma certa euforia no ar e São Paulo se enfeitava para o Natal.
Voltava da visita a um cliente e entretia-me com a leitura de uma dessas revistas semanais, não me recordo qual, quando entre uma freada e outra detive-me a observá-lo.
Devia ter no máximo uns doze anos de idade, usava uma camiseta vermelha desbotada, bermuda amarela, na altura dos joelhos e um par de sandálias, já bem desgastadas, menores que seus pés.
Aparência sofrida, magro, aspecto de doente. Era inevitável um sentimento de compaixão perante um quadro como aquele, de aparente penúria e abandono.
Sentado no banco lateral, na parte traseira do ônibus, meu ângulo de visão era facilitado e esta posição permitia-me olhá-lo sem gerar constrangimento.
Se não fosse por minha curiosidade, sua presença sequer seria notada.
De Santo Amaro para a Nove de Julho, tudo parecia impressioná-lo, os grandes edifícios, os carros luxuosos, aqui um relógio gigante, ali um cachorro perdido numa esquina, a cada olhar um misto de surpresa e susto.
Com a chegada da noite a cidade foi sendo tomada pelas luzes de Natal e a paisagem foi ficando especialmente mais bela... percebi um brilho no seu olhar e pela primeira vez o vi sorrir.
Perguntava-me: qual seria seu nome? De onde vinha? Para onde estaria indo? Enfim, qual era sua história?
No Terminal Bandeiras, ele foi um dos primeiros a descer do ônibus, porém diante do intenso movimento, estancou indeciso, certamente escolhendo o caminho a seguir.
Passos vagarosos, tomou a passarela na direção ao Vale do Anhangabaú. Andava como um estrangeiro. Não contive minha curiosidade e pus-me a segui-lo.
Diante da estação do Metro, sentou-se numa espécie de mureta e passou a observar o movimento do vale.
Fui até a banca de jornal ler as notícias do dia e fiquei por perto a observá-lo disfarçadamente.
Havia intenso movimento de pessoas pois o comércio no centro da cidade ainda estava aberto para as compras natalinas.
Após alguns minutos, uma moça aproximou-se dele. A jovem loura estava elegantemente vestida, via-se que havia saído do trabalho naquele horário. Percebi que perguntou alguma coisa, e que ele meio sem jeito respondia. A conversa foi curta, em minutos a moça deixou o local despedindo-se dele com um leve toque em seu ombro esquerdo.
Seu olhar a acompanhava, desaparecendo na multidão. Nos minutos seguintes sua atitude curiosa não havia mudado. Continuou sentado ali, mesmo quando rompeu uma forte garoa. Era como se estivesse descobrindo o Natal.
A esta altura eu já havia me refugiado da chuva e estava na entrada do metrô, procurando entender o sentido da minha presença ali e que significado aquela experiencia traria para minha vida.
Minutos depois, a jovem estava de volta, trazia o que parecia ser um presente em cada mão. Aproximou-se do rapaz, que a recebeu com um olhar de espanto, pois acredito que não imaginava que ela voltasse.
Visivelmente emocionado, juntou os dois pacotes contra o peito, sorrindo, tentou dizer alguma palavra, mas foi inútil, estava muito emocionado. A jovem compreendendo a situação, acenou para ele e deixou o local.
A noite caia no Vale do Anhangabaú, o garoto depois de alguns minutos, ainda hesitante, abriu um dos presentes, envolvido com papel vermelho. Caixa de bombons, comeu dois, quase de uma vez.
Olhou o segundo pacote e parou por um instante, talvez tentando advinhar o que ele continha. Com rápido puxão retirou a embalagem amarela e reconheceu seu conteúdo: um par de sandálias havaianas novas, azuis. Verificou o tamanho, vai servir, pensou.
A noite avançava e o garoto olhava seus pés e suas velhas sandálias. Parecia rever suas histórias, seus caminhos percorridos, como se despedindo de suas antigas companheiras. Enfim, fez a troca.
Ameaçou guardá-las na caixa, mas desistiu, depositando-as ao lado da mureta da praça. Quem sabe, poderia servir a alguém, devia ter pensado.
Seus pés recebiam e agradeciam o presente. Rapidamente se pôs a andar e em segundos, já estava subindo as escadas que o levariam de volta ao Terminal Bandeiras e de lá para.... Continuei sem saber seu nome, de onde veio, tão pouco sua história.
Fiquei por alí mais alguns minutos, até sentir que já era hora de ir para casa. Peguei o metrô, último vagão e sentei-me junto a janela. Pelos túneis escuros, busquei na memória a ultima cena, a mureta e a calçada vazia, as velhas sandálias que tinham sido rapidamente levadas.
E assim a vida seguia escrevendo novas histórias em outros pés, por outros caminhos, quem sabe em outros Natais.
 
Claudio Lima
Enviado por Claudio Lima em 09/08/2011
Alterado em 02/11/2015
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